quarta-feira, 18 de novembro de 2009

FÚRIA POLITICAMENTE CORRECTA NA ESTRADA

óptimo sketch de António Bettencourt

Cenário:

Dois carros seguem na estrada. Um trava de repente e o outro bate-lhe por trás.
Saem do carro dois senhores muito bem vestidos, dois autênticos lordes, de casaca, chapéu alto e bigode penteado.


Diálogo:

Lorde 1: Caro Senhor! A presente situação leva-me a sugerir que vossa excelência beneficiaria bastante de uma consulta ao seu oftalmologista! Parece que vocemessê não reparou que eu realizei o acto de imobilizar o meu veículo, e só fez o mesmo ao seu dito cujo quando a traseira do meu carro já se encontrava a receber um carinhoso “chega para lá” do seu pára-choques dianteiro!

Lorde 2: Permita-me discordar de si caro amigo! Vossa excelência imobilizou o seu veículo de um modo extremamente brusco e repentino, e para agravar a situação, as obrigatoriamente funcionais luzes de “stop” não foram accionadas como seria de esperar, levando a crer que o seu automóvel eventualmente padecerá de qualquer tipo de problema no sistema eléctrico!

Lorde 1: Ah!! Vossa excelência estará porventura a sugerir que não é você o óbvio e único indivíduo aqui presente culpabilizável nesta contenda?

Lorde 2: O amigo é perspicaz!! Parece que existe algo debaixo desse poeirento chapéu para além de excremento de pássaro!!

Lorde 1: Mas vossa excelência atreve-se a sugerir, ainda que em modo figurativo, que é o excremento aviário que habita a minha consciência??

Lorde 2: Exacto! Vejo que a perspicácia lhe corre nos genes!

Lorde 1: Pois que nesse caso vou ter que cordialmente convidá-lo a realizar um movimento de sucção bocal no meu membro reprodutor!

Lorde 2: Caro senhor!! Assim sendo ver-me-ei obrigado a sugerir a vossa excelência que se desloque para o membro reprodutor que o fecunde!

Lorde 1: Como se atreve?? Deixe-me desde já informá-lo que as suas afirmações obscenas fazem-me duvidar publicamente da sua masculinidade, e até mesmo acusá-lo de ter o hábito de, com gosto, defecar no sentido inverso ao que será natural ao corpo humano!

Lorde 1: O amigo fala como alguém que está fortemente interessado em ver a sua própria dentição diminuída em, pelo menos, 50% das suas unidades!

Lorde 2: Ah mas o caro senhor, na sua diminuída inteligência, está a sugerir que conseguiria completar com sucesso a tarefa de se superiorizar à minha pessoa recorrendo a uma cobarde agressão física como a que descreve? Desafio-o a cumprir com as ridículas palavras que acabou de proferir!

Lorde 1: Vossa Excelência desafia-me? Mas duvida que eu leve por avante os actos a que me predisponho? Sendo assim não me deixa qualquer alternativa senão a de duvidar seriamente da legalidade e moralidade da profissão da senhora sua mãe!!

Lorde 2: A senhora minha mãe não é para aqui chamada caro amigo! Talvez queira antes conversar sobre a senhora sua esposa, que vocemessê terá conhecido num daqueles estabelecimentos de alterne e de frequência duvidosa que o senhor seu pai o habituou a frequentar desde a tenra idade!

Surge em cena um camionista a buzinar que, da janela do seu camião, começa a gritar com os dois intervenientes:

Camionista: Pá ó car(...)o! Mas vocês vão andar com essa me(...)a ou não? Vou ter que vos passar por cima f(...)... –se!?

Os lordes entreolham-se perplexos.

Lorde 1: Bom, caro senhor, parece que, levando em conta a reduzida quantidade de estragos, seria preferível seguirmos o nosso caminho de modo a permitirmos a continuidade da circulação rodoviária na via pública.

Lorde 2: Vejo-me impelido a concordar com vossa excelência. Felicidades para si e para os seus, e aconselho-lhe a máxima cautela na estrada: anda por aí muito condutor mal-formado!

Camionista: (a buzinar) Car(…)o! Andem lá com isso! Estou atrasado para a depilação fo(...)-se!

TRAVO A PORMENOR

(um belo conto da Raquel Rosa)

João Mãozinhas chegou ao Bar "Alvo Certo" como já era habitual. Um homem tem de ter hábitos para se encontrar. No caso de João Mãozinhas não se podia dar ao luxo de ter muitos hábitos, coisas da vida. Mas este ele não dispensava: o seu pequeno-almoço era sagrado assim como todos os rituais que o compunham. Reza a história que o único homem que se atreveu a interromper o dito pequeno-almoço foi o Zarolho, seu companheiro de profissão que o confundiu com a sua avó Marcelina. Teve sorte porque o Mãozinhas ainda não estava a apreciar o seu galão (por acaso muito quente), nem a saborear as suas torradas. Resta acrescentar que o menu só estava completo após a ingestão de um bagacinho duplo.
João Mãozinhas, começava assim o seu dia, antes de ir trabalhar. Mãozinhas era um ladrão profissional, reconhecido internacionalmente, por todos aqueles que soubessem da existência de Barbacena, capital portuguesa do Roubo e Contrabando. Todos os profissionais do ramo dignos de reconhecimento pelas polícias variadas, tinham o maior culto por esta filha de Lisboa.
Esse seu hábito, começara há muitos anos atrás. Nesse tempo João Mãozinhas ainda não havia enredado pelas malhas da sua profissão. Era ainda um jovem como todos os outros, que gostava de ouvir Beatles, Quarteto 2001 e que namorava ao som de Madalena Iglésias. Nesse tempo, João (ainda não Mãozinhas), era o alvo das atenções de todas as garotas do bairro. No entanto, ele só tinha olhos para aquela que não lhe correspondia: Mila. Mila, era uma miúda lá do bairro, que vivia mesmo ao lado do café Alvo Certo. Todos os dias, Mila tomava aí seu pequeno-almoço: um galão e uma torrada. Sentada na mesa do canto, junto à janela. Todos os dias o João observava a sua maneira de segurar no copo, de pagar na torrada, o seu olhar distante, enquanto imaginava o dia em que tomariam juntos o pequeno-almoço. Mas só sonhava. Muitas vezes tentava falar com ela na escola, mas no momento H, a voz fugia da garganta e o corpo ficava sem ossos. Era horrível! Logo ele, o macho latino do Liceu, sem conseguir dirigir a palavra a uma miúda, que até nem era muito gira, mas que tinha um "não sei o quê" que o intimidava. Começava a desesperar, sem entender a razão do seu problema.
Até que um dia ganhou coragem. Não sabe onde, mas arranjou. Afinal a miúda não era um dragão. Parecia até ser bastante simpática. Enfim, engoliu em seco e atirou um "olá, tudo bem?" como quem entra na jaula dos leões. Ela respondeu-lhe com um sorriso e disse "Tudo e Tu?". Naquele momento o mundo parou de girar, tudo, tudo parou para o João. "Sim, está tudo." Foi o que lhe escapou da garganta. Mas a conversa parou por aí, porque a aula estava a começar.
Nesse dia nada mais aconteceu. Nem nos próximos que lhe seguiram. Tempos depois, houve uma festa na garagem. João foi, como era hábito. Enquanto bebia uma cerveja e conversava com o "Tripas" (o tipo mais magro dos arredores), por cima do ombro do amigo avistou Mila. Cada vez ela lhe parecia mais bonita. Mas naquela noite, a miúda estava mesmo gira. Tão gira que João deixou cair o copo de cerveja. No meio da confusão, perdera-a de vista. O amigo, já recomposto, perguntava-lhe de quem estava ele à procura. João não ouvia nada, só podia ter sido uma visão, um sonho, pensava. Só com um milagre eu a voltava a encontrar esta noite. Nessa noite o milagre aconteceu. Começaram os slows. João ficou sentado por opção. Depois de duas músicas, levantou-se para ir respirar ar fresco. Não lhe apetecia dançar sem ser com ela. Qual não foi seu espanto, quando a viu, sentada num canto da garagem, com um copo de laranjada na mão.
- Olá, tudo bem?
Bem que podia ter dito outra coisa, mas quando fala o coração, a cabeça fica calada.
-Está, obrigado. E contigo?
Pelo menos, ela foi mais imaginativa. Aqueles olhos desconcentravam-no. Nunca ninguém o olhara daquela maneira. O que é que ela tinha de tão especial?
-Tudo bem. Vou apanhar um pouco de ar fresco. Aqui está um bocado abafado, não achas? Queres vir?
Burro, burro pensou. Devia antes convidá-la para dançar. Ela mal me conhece, não vai aceitar.
-Boa ideia, estava a pensar em fazer o mesmo. Assim não vou sozinha.
João não se sentou porque, enfim, as pernas não se vergaram. Estaria ele a sonhar ou já teria bebido cerveja a mais?
A noite era de Verão, quente, com aroma a maresia. O céu estava limpo, com nódoas de estrelas. Sentaram-se na muralha do cais. Sabia bem ouvir as ondas do mar.
-Já viste que ainda não me disseste o teu nome? - João não sabia bem o que dizer ou o que fazer. O seu coração parecia o motor de um foguetão, nos momentos antes da descolagem.
-Não me perguntaste, porque já sabias, não é verdade João? - Mila ao rir-se, brincava com os cabelos. A luz da Lua, dava-lhe uma cor mágica nas faces. Parecia uma fada, uma feiticeira.
-Não sabia que sabias tanto sobre mim! - João riu-se. Parecia-lhe que já a conhecia muito bem, há muito tempo. Devia ser da luz da Lua.
-Afinal, somos vizinhos, moramos na mesma rua, andamos na mesma escola, na mesma turma. Pelo menos o nome!
-Mas nunca tínhamos estado assim, a falar.
João, já não sabia bem o que dizer. Aquela miúda estava a levá-lo a um jogo, no qual ele era mestre, com jogadas para ele desconhecidas. Era um jogo perigoso, arrepiante, mas que ele desejava prosseguir.
-Nunca entendi porque é que falavas com as outras raparigas e nunca me dirigias palavra. - Mila olhou-o nos olhos, esperando uma resposta.
Para João, nesse momento, se houvesse um buraquinho no chão ele escondia-se nele. Ela havia feito xeque-mate e ali estava ele, entre a espada e a parede, sem saber o que dizer.
-Parecia que não gostavas de mim. Também nunca me falavas - disse, encolhendo os ombros.
-O que é que te levou a pensar que eu não gostava de ti? - Mila levantou-se e olhou para o mar - ou melhor, o que é que te levou a falar comigo, já pensaste que eu não gostava de ti?
João ficou sem palavras. Aquela miúda enfeitiçava-o com os olhos, e chicoteava-o com palavras. Melhor, acorrentava-o. Ele já não sabia o que dizer. Uma palavra em falso e seria a morte do artista. Respirou fundo e disse:
-È sempre bom fazer novos amigos, ouvir outras opiniões, conselhos... Não vi razão para não podermos ser amigos. Só se tu não quiseres, está claro! És livre de decidir. Apesar de eu gostar de saber porquê.
Agora era ela que não podia escapar - Bem feita, (pensou) julgava que me podia tomar.
-Nunca disse que não queria ser tua amiga, pois não?
De repente começou a fazer vento. Um vento frio, vindo do mar. O que é que São Pedro estaria a tramar? O que é que fosse, deu jeito a João que já não sabia continuar a conversa.
-È melhor ir para dentro. Está a ficar frio. Vamos?
-Está bem.
Lá dentro, os slows continuavam.
-Queres dançar? - perguntou João.
-Porque não? - respondeu-lhe ela, com um brilho nos seus olhos de gato.
Ao som da música, tudo o resto desaparecera. Só ele e ela, ali juntinhos, movendo o corpo ao ritmo do amor. Parecia-lhe um sonho, uma ilusão, o Paraíso. Ao tocar-lhe os cabelos curtos e ondulados, parecia que tinha entre mãos finíssimos fios de ouro, escurecidos pelo tempo. O contacto das mãos dela no seu corpo, provocavam-lhe arrepios e suores frios. Mas como era bom estar ali com ela! Meu Deus, como lhe apetecia beijá-la, levá-la para bem longe dali e dizer-lhe tudo o que sentia. Talvez ela confessasse que sentia o mesmo por ele, que era a sua alma gémea.
Após saírem da festa, foi levá-la até à porta de casa.
-Bem, até amanhã.
-Até amanhã.
Aquele beijo de despedida, por muito inocente, alimentou durante toda a noite, os sonhos e as ilusões do João. Como seria bom se o sonho fosse realidade.
No dia seguinte, um velho sonho tornou-se realidade: Tomaram o pequeno-almoço juntos. João aprendeu todos aqueles rituais meticulosos que nunca mais viria a esquecer. Foi o pequeno-almoço mágico da sua vida.
Este foi o início de uma relação mágica que marcou profundamente a vida do João. Marcou e transformou por completo a vida do João. Durante três anos, João viveu um sonho, levitou e amou e sofreu. A razão do seu sofrimento foi um mal entendido, um erro humano e compreensível, mas nunca esclarecido. Como todos os amores, a vida coloca obstáculos ara provar a sua resistência.
E este amor não resistiu.
Seria muito triste relatar como acabou esta história de amor. Acabou como muitas outras. Quem já se apaixonou perdidamente e perdeu esse amor sabe bem do que falo. E como dói.
João, perante aquela angústia e dor procurou uma dor maior, um sabor mais amargo para se esquecer do passado. È certo que é um erro mas quem já não chorou, quem já não se fechou na sua concha com medo de mais sofrer? João encontrou um sabor mais amargo no bagaço. E o bagaço amargou-lhe a vida. Deixara a escola e começara a trabalhar numa loja qualquer. Tal como quando andava de mota a altas velocidades, queria chegar mais longe, voar, ser livre. Não queria estar preso a nada, nem ao emprego, nem a escritório, nem a horários, a nada. Esta bola de neve levou-o ao sub-mundo, ao mundo obscuro do crime. Especializou-se em cofres. Até tirou um curso de Informática e outro de Electrónica para deslindar os códigos. E era o maior! Todos lhe tinham respeito. O João era o Sr. João Mãozinhas, mestre das jovens gerações e figura de renome, nas vielas escuras de Lisboa. Vivia confortavelmente, rodeado de luxos e de mulheres. Amor não, é muito caro, no submundo da vida lisboeta!
Porque esta história se finde é necessário esclarecer qual a razão de tal pequeno-almoço. Anos atrás, João procurava fugir à Polícia após de um golpe mal sucedido. A bófia apareceu na hora errada, no local errado. João correu o mais que pôde e não pôde pela rua abaixo, até ao cruzamento. Para sua sorte estava um automóvel parado nos sinais. Sem pensar duas vezes, entrou no carro e apontando uma arma ordenou: "Arranca já!". Só momentos mais tarde, viu quem ia a seu lado. Era nada mais nada menos do que seu grande amor - Mila. A Polícia continuava a persegui-los a alta velocidade. Durante a perseguição, que durou meia hora, conseguiram compreender que desde que se separaram tinham sido infelizes devido a um maldito pormenor, que os fez brigarem. Maldito pormenor. A polícia começou a disparar.
-Mila, é melhor parares. Eu rendo-me.
-Não. Podemos escapar. Eu conheço bem a estrada. Vamos fugir daqui, desta vida...
Enquanto falava com um sorriso nos lábios e os olhos brilhantes, Mila desenhava mil e um destinos. Enquanto sorria uma bala assassina atravessou-lhe o vidro traseiro. O carro bateu num muro.
-Mila não morras! Agora não! Não fugas de mim! Mila - chorava baixinho.
-João, nunca me esqueci de ti. Por favor - sussurrou - não te esqueças de mim. Aproveita da vida todos os segundos. Os grandes momentos são feitos de pormenores - a sua voz começava a fugir.
-Mila, fica comigo - João não sabia o que fazer.
-Adeus João. Foge, foge - Foram as suas últimas palavras, fugindo à vida, à noite e à chuva que começava a cair.
Agora se compreende a razão pela qual esse homem tinha tanto cuidado ao tomar o pequeno-almoço, lembrança de tempos felizes com um travo forte à realidade dura e cruel da vida.
O que é senão a vida senão uma sequência de pormenores?

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Aforismos - pacote II

Gripe A:
O mais terrível da gripe A é que falta uma eternidade para chegar a Z.


Bíblia:
A pena do Saramago é a sua pena não ter escrito a Bíblia.


Vampiros:
Os Vampiros preferem sangue porque a cerveja à noite é caríssima.

PEDRO BOIÇA


Morangos com Açúcar:
Se fosse filha da geração "Morangos com Açúcar" preferia fazer dieta.

JOANA PEREIRA

Romance:
O amor é fogo, mas se brincares com ele queimas-te.

ANDRÉ MARTINS

Vampiros:
Venha trabalhar connosco e solte o vampiro que há em si - Ministério das Finanças.

RAQUEL ROSA

Gripe A:

Com a gripe A ainda mais políticos ranhosos.

A gripe A é uma doença de homens. Tudo começou com os porcos.

Bíblia:

O extracto bancário é a Bíblia da mulher.

Vampiros:

O Marco Horácio é o pior pesadelo de qualquer vampiro.

CRISTINA SANTOS

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

AFORISMOS - pacote I

Para este exercício, foram sugeridos os seguintes 5 temas, discutidos ou mencionados anteriormente em aula: Gripe A, Bíblia, Morangos com Açúcar, Vampiros, Romance.






A gripe A é como o futebol do Sporting: primeiro ameaça, depois gera muita discussão e a final verifica-se que não faz mal a ninguém.

Os Morangos com Açúcar estão para as pitas como os tremoços e o whisky estão para o Eusébio.


Aforismo Católico
Se a Bíblia tivesse a receita para o toucinho-do-céu seria o livro perfeito.

Aforismo de Pitas
Do Zé Milho fazia-se um granda pão.



RUI FREITAS





- Bíblia
O conhecimento mais útil que se retira da Bília é o conhecimento no
sentido bíblico.

- Romance
O bom romance à moda antiga era de paixão à cova.






PAULO CAETANO





Bíblia
- Guttenberg imprimiu a Bíblia porque o Senhor não aceita trabalhos escritos à mão.



Vampiros
- Vampiro é calão para Político. E vice-versa.



Benfica
- Quando o Benfica perde pontos, a esposa ganha um olho negro.



ANTÓNIO BETTENCOURT





Romance

O amor materializa-se quando se vive e desfaz-se quando se desconhece.


Bíblia

Nós fazemos a nossa Bíblia com aquilo que vivemos, a outra é para quem a quiser ler.


JOYCE MENDONÇA




GRIPE A

Se não houvesse víruses teríamos que nos assassinar mais frequentemente.

Bíblia

A profundidade de um qualquer texto religioso pode ser um poço perigosamente ralo.


ROMANCE

A heroína balzaquiana tinha muito mais espaço debaixo das saias do que eu - agora é mais difícil.


CONCEIÇÃO NUNES




ANO ZERO



excelente crónica de Joana Pereira

O zero vem antes do um, mas não tem de ser onde tudo começa. Pode ser o fim, o buraco, o vazio. O zero cheira a morte. Senti-o quando tive de dar um passo mais largo para passar por cima do corpo que jazia coberto por um lençol branco, à saída daquele café que chegou a fechar portas e que já reabriu com nova gerência. Durante uma hora e meia tentaram-no reanimar, em vão. Não sei como se chamava o rapaz, não me lembro da cara dele, nem sequer se me cruzei com ele ao balcão. Mas aos 17 anos ali estava, morto, gelado, naquela calçada cheia de beatas, à porta de um barzeco de jovens para os lados do Saldanha. Passava das duas da manhã. Tudo porque tomara um copo de qualquer coisa, com álcool, e não o podia ter feito. Por isso, aquele pai, desfigurado, a correr atrás do amigo e a gritar-lhe: “Por que o deixaste beber?”.
O café era – e continua a ser – todo envidraçado. As luzes da ambulância, o desespero e a morte passaram, como actos de uma peça, naquele palco improvisado, lá fora. Durante uma hora e meia, fomos reféns da cena. Sem conseguir sair, porque o médico não desistia e continuava a bater-se por aquele peito apagado. Corpo e médico bloqueavam a saída.
Nessa altura acreditava em Deus – ou deus? – e lembro-me de ter ficado com as unhas da mão direita marcadas nos nós dos dedos da mão esquerda à força de tanto pedir para que esse Deus – não será antes com minúscula? – o salvasse. Não o salvou e eu tive de passar por cima do pano branco.
Aquele era o ano zero. O daquele corpo de 17 anos a que não consegui dar nome; o meu, a levantar primeiro a perna direita para pousar a esquerda já só depois do lençol. Para ele, o zero era o fim, para mim a convicção absoluta e adolescente de um começo: “Agora é que é, agora é que vais começar a viver, de que vale seres tão atinada quando podes morrer a qualquer momento, Senhor – ou, antes, senhor? – porque não salvaste?”.
Lembro-me que no dia seguinte, um sábado, estava sol. Lembro-me de vestir a minha roupa preferida daquela época (era Inverno) porque me apetecia. Lembro-me de sair de casa. Lembro-me de ter de tomar outro caminho até ao metro da linha amarela, porque não conseguia passar pelo mesmo passeio que, horas antes, tinha sido branco. Lembro-me de ter entrado na carruagem a pensar “hoje vou fazer uma coisa diferente, começar de novo”. Lembro-me de ter ido para o mesmo jardim, encontrar-me com as mesmas pessoas e ter as mesmas conversas. Lembro-me de pensar que era feliz. E de sentir que, afinal, o zero não tem de feder a morte. Mas que também pode cheirar a vazio.

Volatilidades

exercício das 5 palavras obrigatórias~

“Que dor da cabeça filha da mãe!”

Acordou com o que devia ser a pior ressaca que alguma vez tivera, e este foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu.

Lançou um assobio. Pareceu-lhe natural, da forma como a boca lhe sabia a papel de música. Tinha provado uma vez, só para confirmar a veracidade da frase.

O assobio, por sua vez, trouxe de arrasto a areia que tinha nos lábios. E no resto do corpo. O que também era natural, uma vez que estava deitado na praia, a julgar pelo que sentia à sua volta.

O sol fazia-lhe arder os olhos. Nem queria imaginar como seria quando os abrisse.

Tinha ainda a roupa. “O blusão!” Virou-se e viu o bolso. Vazio! “A carteira, os documentos, o dinheiro. Merda, até o tabaco!” Já nada era sagrado!

Bem, vamos lá abrir os olhos. Devagarinho... Primeiro o dir... “Ena caraças! Mesmo de frente!” Virou-se para o outro lado.

Ao fazê-lo, sentiu uma dor na perna, na zona da rótula. Abriu os olhos, desta vez com mais sucesso. Tinha a perna direita das calças cortada, e na perna uma marca, aparentemente a ferro quente. A frase “Fumar Mata!”

Não se lembrava de nada. Como sempre. Já deviam andar a espalhar a história pelo bairro. Como sempre. Mas nunca mais os seus lábios lhe tocariam. Iria mudar a sua alcunha para aquelas alcoviteiras de alcagoitas lá do bairro.

“Acabou-se de vez o tabaco.”

Paulo Caetano

Doença.Crónica: "O(s) ano(s) zero(s)"



Todos nós já passámos por vários anos zero: quando nascemos, perdemos a virgindade, recebemos o nosso primeiro ordenado, casamos, arranjamos um amante, temos filhos, divorciamo-nos ou somos cremados (não necessariamente por esta lógica). Ano zero aponta para um recomeço, a “tábua rasa” (abençoado Viagra), para aqueles momentos que, de alguma forma, nos marcaram, em que a nossa vida, nalgum ponto específico, começa a contar somente a partir daí. Por exemplo, hoje é o meu ano zero como cronista. Doravante não sei se será possível somar algum algarismo à sequência já iniciada, mas, como se costuma dizer, “o futuro a Deus pertence” e, como não tenho vocação para mexer no que é dos outros, permaneço na dúvida.
Quantos de nós, caros leitores, já suspirámos: “Ai, se eu pudesse voltar atrás...”. Mas o problema é esse: o tempo dá, de facto, muitas voltas, mas não as suficientes para inverter a marcha. Todavia, é possível fazer batota e simular um ano zero. Por exemplo, existem mulheres que pagam alguns euros para voltar a ter um (saudoso) hímen incólume. Um engenho idêntico ao utilizado quando se eliminam os quilómetros que um carro já percorreu. Pretende-se apagar o que já se viveu, para não contaminar o que se vive e não comprometer o que se viverá. Confesso: “zerar” alguma coisa dá um certo jeito.
De facto, o zero (aka nicles, batatóides) é um número interessante e que me tem perseguido. Quantas vezes ganhei o Euromilhões? Zero. Quantas vezes me cruzei com o George Clooney? Zero (Madame Tussauds não conta). Também nunca plantei uma árvore, escrevi um livro, nem pari. Zero, zero, zero. Mas posso mudar o rumo à minha vida, ou seja, passar a jogar no Euromilhões, ir viver para Itália, enterrar um caroço, escrevinhar umas letras e deixar de tomar a pílula. Mas com uma condição: saber o que sei hoje, porque isto de começar da estaca zero a zeros não tem muita piada. Doença? Crónica.

Cristina Santos

As 5 palavras obrigatórias



Tinha sido uma noite demasiado absurda para acabar com a lua. Amanhecia. Vagueava aleatoriamente à procura de um refúgio. Evitar a inevitável ressaca já não era, definitivamente, uma prioridade. Resignado, procurei um estabelecimento comercial aberto à procura de tabaco. Não que fumasse, mas queria dar uso ao isqueiro que a Sueca me tinha dado. Tinha acabado de a deixar no hotel. Não subi ao quarto porque me tinha parecido uma Sueca demasiado fraquinha. Ah, e de manhã as ginjas sabem muito melhor. Acho que os primeiros raios de Sol, os mesmo matinais, intensificam o aroma e o paladar. Estava bêbado, fazer o quê? Fui à tasca do Alfredo, fechada. A do tio Alberto, por abrir. O café do João, vazio. Será que tinham ido todos de férias e ninguém me tinha dito. O Joaquim, sabia que tinha ido para as termas, por causa do problema na rótula. Ele ia sempre depois do Verão. Não encontrava mesmo ninguém. Pensei em voltar para a Sueca. Não. Apanhei um táxi e voltei para casa.


Pedro Boiça

Eu sou um projector de vídeo, pois claro

David Neto conseguiu descobrir e revelar a faceta erótica deste humilde aparelho
O espanador chega a sítios que eu nem me lembrava que existiam em mim. O pulso firme e experiente combinado com o toque suave dos dedos remetem uma energia que percorre o pequeno pedaço de plástico, todas as penas artificiais ao mesmo tempo e chega à minha caixa de maneira tão relaxante e ao mesmo tempo tão viva que não sei se hei de adormecer ou ficar irrequieto. Todos os meus botões superiores são minuciosamente limpos, tanto na sua posição inicial como carregados para baixo. Não existe melhor sensação do que o indicador esquerdo da Dona Elvira a carregar no meu botão de AV enquanto o espanador percorre as arestas desse mesmo botão, passando as suas penas para o interior da caixa e quase me tocando nos circuitos. Ai Elvira, se fosses uma mulher bonita... Temos esta relação à coisa de três anos, desde que eu cá cheguei. Todas as tardes ela entra na sala, aspira o chão e limpa as mesas, e trata de mim no fim. Passa todos os dias 10 minutos a tirar-me o pó com massagens e a polir-me. Nunca diz nada, mas eu sei que ela adora fazer isto. Sinto a paixão que ela coloca no espanador e o calor que sai por aquelas penas falsas e me passa uma energia profunda. Às vezes pesa-me a consciência e sinto-me como se estivesse a vadiar. Prometo a mim próprio que não a vou deixar tocar-me assim outra vez, mas nunca consigo. Com a vida que tenho, é impossível resistir.
O que eu gosto mesmo é quando vem alguém mexer em mim pela primeira vez. Estou eu sozinho, em cima de uma mesa, e um desconhecido vem por traz de mim e insere bruscamente o cabo de alimentação, fazendo percorrer entre todos os meus circuitos uma corrente eléctrica que me deixa excitado da lente às entradas. Normalmente, depois deste início exaltado, o desconhecido tem muito mais calma e delicadeza a enfiar o cabo VGA de 24 pinos. Alinha a ponta do seu cabo macho às paredes da minha entrada e eu sinto logo a informação a passar pelos pinos, um de cada vez. Depois, com um toque firme, o desconhecido gira os parafusos do cabo com o polegar e o indicador até estes se introduzirem completamente dentro de mim. Por esta altura já nos conhecemos tão bem que ele desliza os seus dedos pela minha traseira e pelas minhas costas até chegar ao meu botão On. Às vezes o desconhecido provoca-me, fica ali a acariciar a saliência nas minhas costas durante algum tempo, sem carregar totalmente para baixo. Eu, cheio de informação dentro de mim, penso sempre que não vou aguentar e que me vou ligar automaticamente, explodindo números e barras e fotos e vídeos para o ecrã branco à minha frente. Mas até agora tenho resistido sempre. Deve ser do treino. O ritual acaba sempre com o desconhecido a girar suavemente o meu anel para o lado onde a informação projectada fica mais focada. Por muito relaxante que isto seja, nunca me consigo abstrair do facto que depois da imagem estar pronta, o desconhecido deixa-me e vai sentar-se no seu lugar, sem me dizer nada.
Passa tanta gente gira à minha volta. Alguns olham, de certeza que pensam nisso, mas poucos me tocam. São capazes de estar horas a fio a acariciar uma data de botões com letras diferentes enquanto olham para um ecrã mínimo à sua frente, mas não saem do seu lugar para virem mexer em mim. Eu faço tudo por todos eles, mas só meia dúzia de gatos pingados é que me giram o anel ou me carregam nos botões de vez em quando. Eu emano um cheiro tão bom quando projecto qualquer coisa. A única coisa que quero é amor, o mais físico possível. Será que já ninguém trai os maridos ou as mulheres?

Vida de artista não é fácil

o projector na sala de aula, segundo Cristina Santos

Acordo cedo e espreguiço-me, rodando, cuidadosamente, a lente para o lado direito e, depois, para o esquerdo. É nesta altura que reparo que esta se encontra desfocada. “Tal não foi a noite de ontem”, pensei para com os meus 11 botões. De facto, ontem fora o aniversário da tela de projecção, Shakira, minha namorada dos tempos de meninice. Ainda me lembro da primeira vez que a vi. Ficara tão atónito com a sua presença que os meus fusíveis entraram em curto-circuito. E foi assim que chamei a sua atenção. Confesso que não fora a minha melhor performance, mas o meu ar desastrado fê-la sorrir. Desde esse dia que as idas para a escola ganharam outro interesse e as férias perderam a excitação que sempre as caracterizaram. Mas, como qualquer êxtase que se preze, depressa terminou.
Dadas as minhas humildes raízes, não pude continuar a estudar, tendo começado a trabalhar para ajudar os meus pais a criar os meus 15 irmãos. Estreei-me a estagiar num cinemazito na periferia da cidade, seguindo-se mais uns quantos, de igual gosto duvidoso (fora a primeira vez que vira uma mulher nua) e onde continuava a ser explorado. E tal como cantam os Ena Pá 2000: “vida de cão é não poder dizer que não”. Além disso, como tinha de trabalhar mais de 12 horas seguidas, por vezes ocorriam falhas, levando a entidade patronal a achar que, dando-me uns murros bem assentes, o processo se inverteria.
E assim lá seguia com a minha vidinha do costume: de casa para o trabalho e do trabalho para casa, escondendo os hematomas da senhora minha mãe que, entretanto, tivera de ser transplantada, após a morte do meu pai, num acidente de trabalho, vítima da sua avançada idade, frágil saúde e de uma aparatosa queda de uma coluna de metro e meio, depois de alguém ter tropeçado num fio. As dificuldades aumentaram e 14 dos meus irmãos emigraram (3 deles para fugir à polícia, pois andavam a roubar a nossa comunidade, para depois venderem as peças no mercado negro). Fiquei eu, a minha doente e chorosa mãe e o meu irmão deficiente, pois nascera com um defeito de fabrico. Entretanto, perdera o rasto à Shakira e de rastos prossegui.
Mas a minha triste sina abrandara quando fui trabalhar para o Hotel Amazónia, onde estou efectivo. Foi lá que reencontrei o amor. Todos os dias trabalhava em cima da mesma mesa e um retroprojector não é de ferro. Flausina é o seu nome e vivemos em união de facto. Depois de dois longos meses de felicidade, e a saltitar de um piso para o outro, eis que reencontro, na sala nº 9, Shakira, já casada com as gémeas e quitadas colunas de som. Pois é, para além de bígama, tornara-se bissexual. Disse-me que, depois do desgosto amoroso que sofreu com a minha partida, nunca mais foi capaz de amar outro homem. Tornámo-nos amantes. Todos os dias eu projecto-me nela, com a minha mulher por baixo e as suas esposas ao lado. E ainda me pagam para isso.
Ontem, Sexta-feira, foi dia de festa. Ufa, tenho de me recompor. São 10.27 h e estou quase a entrar ao serviço. Hoje é o dia em que tenho de aturar aquela gente que, coitados, não tendo nada de mais interessante para fazer num Sábado de manhã, vêm para um hotel e não é para alugar um quarto. Falta apresentar-me: Olá, eu sou o Amílcar. Tenho uma mulher, uma amante e duas amigas gémeas homossexuais. Se eu podia viver sem esta selvajaria matinal? Podia, mas não era a mesma coisa.

O ano zero de António Bettencourt




Ano zero foi uma expressão que teve de me ser explicada da primeira vez que a ouvi. Ano zero? O que é isso?
Zero, literalmente, significa nada. Significa a ausência de conteúdo. É o vazio. Ou assim pensava eu.
Parece que antes de chegar ao um, algo pode existir e subsistir como zero. Não é nada, mas é algo.
Mas afinal é o quê? Quem é que criou o ano zero? Quem é que olhou para determinada situação, facto, argumento, e a classificou como “zero”, mas num sentido positivo?
A aplicação prática de “ano zero” corresponde a uma preparação para o um. Sinceramente, penso que o ano zero foi criado por algum militar sádico do nosso exército, que como bom português, sabe que antes de se atingir o um, tem que se passar pelo zero.
“Recrutas, 30 flexões! Toca a empurrar o planeta, seus animais! Tu, faz a contagem!”
E o recruta cai de braços no chão, prontamente seguido pelos seus camaradas. E começa a contar “1,2,3,4,5...”. O sargento deixa-os chegar aos 30 e, olhando para um pelotão de cabeças rapadas ofegantes, dirige-se ao soldado raso que fez a contagem: “Soldado Rodrigues! Então o zero não é número? Não o ouvi a contar o zero! Mais trinta, e podem agradecê-las ao camarada Rodrigues!”
E a partir daí, o dito pelotão começa todas as contagens com o zero, seguido do um, dois, três, e afins.
Ou seja, o zero, como número unitário, parece ter alguma utilidade.
Parece que é uma preparação para algo... é algo por onde uma pessoa tem que passar quando não está preparada ou se quer preparar melhor para o um. E porque não começar logo pelo um? Será “miaúfa”? Agora temos medo do um?
“Ah tenho medo do um, deixa-me começar pelo zero que é mais fácil”. Mas isto faz sentido?
Parece que sim. Mas o ano zero é fruto da evolução.
Por exemplo, há 60 anos atrás, os pilotos da aviação militar inglesa recebiam umas noções de aeronáutica, um tanto de treino físico, e eram enfiados num spitfire desprovido de qualquer tipo de controle electrónico em que sabiam que a manche era para conduzir, os pedais eram para os flaps, e o botão de disparo era para abater aviões alemães.
Hoje em dia, só pega num avião quem já fez milhares de horas de simulador.
Que se passou connosco? Estamos com medo? Temos que começar pelo zero, porque o um é assustador?
Será que a raça humana está com um ataque de mariquice?