segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Vida de artista não é fácil

o projector na sala de aula, segundo Cristina Santos

Acordo cedo e espreguiço-me, rodando, cuidadosamente, a lente para o lado direito e, depois, para o esquerdo. É nesta altura que reparo que esta se encontra desfocada. “Tal não foi a noite de ontem”, pensei para com os meus 11 botões. De facto, ontem fora o aniversário da tela de projecção, Shakira, minha namorada dos tempos de meninice. Ainda me lembro da primeira vez que a vi. Ficara tão atónito com a sua presença que os meus fusíveis entraram em curto-circuito. E foi assim que chamei a sua atenção. Confesso que não fora a minha melhor performance, mas o meu ar desastrado fê-la sorrir. Desde esse dia que as idas para a escola ganharam outro interesse e as férias perderam a excitação que sempre as caracterizaram. Mas, como qualquer êxtase que se preze, depressa terminou.
Dadas as minhas humildes raízes, não pude continuar a estudar, tendo começado a trabalhar para ajudar os meus pais a criar os meus 15 irmãos. Estreei-me a estagiar num cinemazito na periferia da cidade, seguindo-se mais uns quantos, de igual gosto duvidoso (fora a primeira vez que vira uma mulher nua) e onde continuava a ser explorado. E tal como cantam os Ena Pá 2000: “vida de cão é não poder dizer que não”. Além disso, como tinha de trabalhar mais de 12 horas seguidas, por vezes ocorriam falhas, levando a entidade patronal a achar que, dando-me uns murros bem assentes, o processo se inverteria.
E assim lá seguia com a minha vidinha do costume: de casa para o trabalho e do trabalho para casa, escondendo os hematomas da senhora minha mãe que, entretanto, tivera de ser transplantada, após a morte do meu pai, num acidente de trabalho, vítima da sua avançada idade, frágil saúde e de uma aparatosa queda de uma coluna de metro e meio, depois de alguém ter tropeçado num fio. As dificuldades aumentaram e 14 dos meus irmãos emigraram (3 deles para fugir à polícia, pois andavam a roubar a nossa comunidade, para depois venderem as peças no mercado negro). Fiquei eu, a minha doente e chorosa mãe e o meu irmão deficiente, pois nascera com um defeito de fabrico. Entretanto, perdera o rasto à Shakira e de rastos prossegui.
Mas a minha triste sina abrandara quando fui trabalhar para o Hotel Amazónia, onde estou efectivo. Foi lá que reencontrei o amor. Todos os dias trabalhava em cima da mesma mesa e um retroprojector não é de ferro. Flausina é o seu nome e vivemos em união de facto. Depois de dois longos meses de felicidade, e a saltitar de um piso para o outro, eis que reencontro, na sala nº 9, Shakira, já casada com as gémeas e quitadas colunas de som. Pois é, para além de bígama, tornara-se bissexual. Disse-me que, depois do desgosto amoroso que sofreu com a minha partida, nunca mais foi capaz de amar outro homem. Tornámo-nos amantes. Todos os dias eu projecto-me nela, com a minha mulher por baixo e as suas esposas ao lado. E ainda me pagam para isso.
Ontem, Sexta-feira, foi dia de festa. Ufa, tenho de me recompor. São 10.27 h e estou quase a entrar ao serviço. Hoje é o dia em que tenho de aturar aquela gente que, coitados, não tendo nada de mais interessante para fazer num Sábado de manhã, vêm para um hotel e não é para alugar um quarto. Falta apresentar-me: Olá, eu sou o Amílcar. Tenho uma mulher, uma amante e duas amigas gémeas homossexuais. Se eu podia viver sem esta selvajaria matinal? Podia, mas não era a mesma coisa.

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