segunda-feira, 2 de novembro de 2009

ANO ZERO



excelente crónica de Joana Pereira

O zero vem antes do um, mas não tem de ser onde tudo começa. Pode ser o fim, o buraco, o vazio. O zero cheira a morte. Senti-o quando tive de dar um passo mais largo para passar por cima do corpo que jazia coberto por um lençol branco, à saída daquele café que chegou a fechar portas e que já reabriu com nova gerência. Durante uma hora e meia tentaram-no reanimar, em vão. Não sei como se chamava o rapaz, não me lembro da cara dele, nem sequer se me cruzei com ele ao balcão. Mas aos 17 anos ali estava, morto, gelado, naquela calçada cheia de beatas, à porta de um barzeco de jovens para os lados do Saldanha. Passava das duas da manhã. Tudo porque tomara um copo de qualquer coisa, com álcool, e não o podia ter feito. Por isso, aquele pai, desfigurado, a correr atrás do amigo e a gritar-lhe: “Por que o deixaste beber?”.
O café era – e continua a ser – todo envidraçado. As luzes da ambulância, o desespero e a morte passaram, como actos de uma peça, naquele palco improvisado, lá fora. Durante uma hora e meia, fomos reféns da cena. Sem conseguir sair, porque o médico não desistia e continuava a bater-se por aquele peito apagado. Corpo e médico bloqueavam a saída.
Nessa altura acreditava em Deus – ou deus? – e lembro-me de ter ficado com as unhas da mão direita marcadas nos nós dos dedos da mão esquerda à força de tanto pedir para que esse Deus – não será antes com minúscula? – o salvasse. Não o salvou e eu tive de passar por cima do pano branco.
Aquele era o ano zero. O daquele corpo de 17 anos a que não consegui dar nome; o meu, a levantar primeiro a perna direita para pousar a esquerda já só depois do lençol. Para ele, o zero era o fim, para mim a convicção absoluta e adolescente de um começo: “Agora é que é, agora é que vais começar a viver, de que vale seres tão atinada quando podes morrer a qualquer momento, Senhor – ou, antes, senhor? – porque não salvaste?”.
Lembro-me que no dia seguinte, um sábado, estava sol. Lembro-me de vestir a minha roupa preferida daquela época (era Inverno) porque me apetecia. Lembro-me de sair de casa. Lembro-me de ter de tomar outro caminho até ao metro da linha amarela, porque não conseguia passar pelo mesmo passeio que, horas antes, tinha sido branco. Lembro-me de ter entrado na carruagem a pensar “hoje vou fazer uma coisa diferente, começar de novo”. Lembro-me de ter ido para o mesmo jardim, encontrar-me com as mesmas pessoas e ter as mesmas conversas. Lembro-me de pensar que era feliz. E de sentir que, afinal, o zero não tem de feder a morte. Mas que também pode cheirar a vazio.

Sem comentários:

Enviar um comentário