quarta-feira, 18 de novembro de 2009

TRAVO A PORMENOR

(um belo conto da Raquel Rosa)

João Mãozinhas chegou ao Bar "Alvo Certo" como já era habitual. Um homem tem de ter hábitos para se encontrar. No caso de João Mãozinhas não se podia dar ao luxo de ter muitos hábitos, coisas da vida. Mas este ele não dispensava: o seu pequeno-almoço era sagrado assim como todos os rituais que o compunham. Reza a história que o único homem que se atreveu a interromper o dito pequeno-almoço foi o Zarolho, seu companheiro de profissão que o confundiu com a sua avó Marcelina. Teve sorte porque o Mãozinhas ainda não estava a apreciar o seu galão (por acaso muito quente), nem a saborear as suas torradas. Resta acrescentar que o menu só estava completo após a ingestão de um bagacinho duplo.
João Mãozinhas, começava assim o seu dia, antes de ir trabalhar. Mãozinhas era um ladrão profissional, reconhecido internacionalmente, por todos aqueles que soubessem da existência de Barbacena, capital portuguesa do Roubo e Contrabando. Todos os profissionais do ramo dignos de reconhecimento pelas polícias variadas, tinham o maior culto por esta filha de Lisboa.
Esse seu hábito, começara há muitos anos atrás. Nesse tempo João Mãozinhas ainda não havia enredado pelas malhas da sua profissão. Era ainda um jovem como todos os outros, que gostava de ouvir Beatles, Quarteto 2001 e que namorava ao som de Madalena Iglésias. Nesse tempo, João (ainda não Mãozinhas), era o alvo das atenções de todas as garotas do bairro. No entanto, ele só tinha olhos para aquela que não lhe correspondia: Mila. Mila, era uma miúda lá do bairro, que vivia mesmo ao lado do café Alvo Certo. Todos os dias, Mila tomava aí seu pequeno-almoço: um galão e uma torrada. Sentada na mesa do canto, junto à janela. Todos os dias o João observava a sua maneira de segurar no copo, de pagar na torrada, o seu olhar distante, enquanto imaginava o dia em que tomariam juntos o pequeno-almoço. Mas só sonhava. Muitas vezes tentava falar com ela na escola, mas no momento H, a voz fugia da garganta e o corpo ficava sem ossos. Era horrível! Logo ele, o macho latino do Liceu, sem conseguir dirigir a palavra a uma miúda, que até nem era muito gira, mas que tinha um "não sei o quê" que o intimidava. Começava a desesperar, sem entender a razão do seu problema.
Até que um dia ganhou coragem. Não sabe onde, mas arranjou. Afinal a miúda não era um dragão. Parecia até ser bastante simpática. Enfim, engoliu em seco e atirou um "olá, tudo bem?" como quem entra na jaula dos leões. Ela respondeu-lhe com um sorriso e disse "Tudo e Tu?". Naquele momento o mundo parou de girar, tudo, tudo parou para o João. "Sim, está tudo." Foi o que lhe escapou da garganta. Mas a conversa parou por aí, porque a aula estava a começar.
Nesse dia nada mais aconteceu. Nem nos próximos que lhe seguiram. Tempos depois, houve uma festa na garagem. João foi, como era hábito. Enquanto bebia uma cerveja e conversava com o "Tripas" (o tipo mais magro dos arredores), por cima do ombro do amigo avistou Mila. Cada vez ela lhe parecia mais bonita. Mas naquela noite, a miúda estava mesmo gira. Tão gira que João deixou cair o copo de cerveja. No meio da confusão, perdera-a de vista. O amigo, já recomposto, perguntava-lhe de quem estava ele à procura. João não ouvia nada, só podia ter sido uma visão, um sonho, pensava. Só com um milagre eu a voltava a encontrar esta noite. Nessa noite o milagre aconteceu. Começaram os slows. João ficou sentado por opção. Depois de duas músicas, levantou-se para ir respirar ar fresco. Não lhe apetecia dançar sem ser com ela. Qual não foi seu espanto, quando a viu, sentada num canto da garagem, com um copo de laranjada na mão.
- Olá, tudo bem?
Bem que podia ter dito outra coisa, mas quando fala o coração, a cabeça fica calada.
-Está, obrigado. E contigo?
Pelo menos, ela foi mais imaginativa. Aqueles olhos desconcentravam-no. Nunca ninguém o olhara daquela maneira. O que é que ela tinha de tão especial?
-Tudo bem. Vou apanhar um pouco de ar fresco. Aqui está um bocado abafado, não achas? Queres vir?
Burro, burro pensou. Devia antes convidá-la para dançar. Ela mal me conhece, não vai aceitar.
-Boa ideia, estava a pensar em fazer o mesmo. Assim não vou sozinha.
João não se sentou porque, enfim, as pernas não se vergaram. Estaria ele a sonhar ou já teria bebido cerveja a mais?
A noite era de Verão, quente, com aroma a maresia. O céu estava limpo, com nódoas de estrelas. Sentaram-se na muralha do cais. Sabia bem ouvir as ondas do mar.
-Já viste que ainda não me disseste o teu nome? - João não sabia bem o que dizer ou o que fazer. O seu coração parecia o motor de um foguetão, nos momentos antes da descolagem.
-Não me perguntaste, porque já sabias, não é verdade João? - Mila ao rir-se, brincava com os cabelos. A luz da Lua, dava-lhe uma cor mágica nas faces. Parecia uma fada, uma feiticeira.
-Não sabia que sabias tanto sobre mim! - João riu-se. Parecia-lhe que já a conhecia muito bem, há muito tempo. Devia ser da luz da Lua.
-Afinal, somos vizinhos, moramos na mesma rua, andamos na mesma escola, na mesma turma. Pelo menos o nome!
-Mas nunca tínhamos estado assim, a falar.
João, já não sabia bem o que dizer. Aquela miúda estava a levá-lo a um jogo, no qual ele era mestre, com jogadas para ele desconhecidas. Era um jogo perigoso, arrepiante, mas que ele desejava prosseguir.
-Nunca entendi porque é que falavas com as outras raparigas e nunca me dirigias palavra. - Mila olhou-o nos olhos, esperando uma resposta.
Para João, nesse momento, se houvesse um buraquinho no chão ele escondia-se nele. Ela havia feito xeque-mate e ali estava ele, entre a espada e a parede, sem saber o que dizer.
-Parecia que não gostavas de mim. Também nunca me falavas - disse, encolhendo os ombros.
-O que é que te levou a pensar que eu não gostava de ti? - Mila levantou-se e olhou para o mar - ou melhor, o que é que te levou a falar comigo, já pensaste que eu não gostava de ti?
João ficou sem palavras. Aquela miúda enfeitiçava-o com os olhos, e chicoteava-o com palavras. Melhor, acorrentava-o. Ele já não sabia o que dizer. Uma palavra em falso e seria a morte do artista. Respirou fundo e disse:
-È sempre bom fazer novos amigos, ouvir outras opiniões, conselhos... Não vi razão para não podermos ser amigos. Só se tu não quiseres, está claro! És livre de decidir. Apesar de eu gostar de saber porquê.
Agora era ela que não podia escapar - Bem feita, (pensou) julgava que me podia tomar.
-Nunca disse que não queria ser tua amiga, pois não?
De repente começou a fazer vento. Um vento frio, vindo do mar. O que é que São Pedro estaria a tramar? O que é que fosse, deu jeito a João que já não sabia continuar a conversa.
-È melhor ir para dentro. Está a ficar frio. Vamos?
-Está bem.
Lá dentro, os slows continuavam.
-Queres dançar? - perguntou João.
-Porque não? - respondeu-lhe ela, com um brilho nos seus olhos de gato.
Ao som da música, tudo o resto desaparecera. Só ele e ela, ali juntinhos, movendo o corpo ao ritmo do amor. Parecia-lhe um sonho, uma ilusão, o Paraíso. Ao tocar-lhe os cabelos curtos e ondulados, parecia que tinha entre mãos finíssimos fios de ouro, escurecidos pelo tempo. O contacto das mãos dela no seu corpo, provocavam-lhe arrepios e suores frios. Mas como era bom estar ali com ela! Meu Deus, como lhe apetecia beijá-la, levá-la para bem longe dali e dizer-lhe tudo o que sentia. Talvez ela confessasse que sentia o mesmo por ele, que era a sua alma gémea.
Após saírem da festa, foi levá-la até à porta de casa.
-Bem, até amanhã.
-Até amanhã.
Aquele beijo de despedida, por muito inocente, alimentou durante toda a noite, os sonhos e as ilusões do João. Como seria bom se o sonho fosse realidade.
No dia seguinte, um velho sonho tornou-se realidade: Tomaram o pequeno-almoço juntos. João aprendeu todos aqueles rituais meticulosos que nunca mais viria a esquecer. Foi o pequeno-almoço mágico da sua vida.
Este foi o início de uma relação mágica que marcou profundamente a vida do João. Marcou e transformou por completo a vida do João. Durante três anos, João viveu um sonho, levitou e amou e sofreu. A razão do seu sofrimento foi um mal entendido, um erro humano e compreensível, mas nunca esclarecido. Como todos os amores, a vida coloca obstáculos ara provar a sua resistência.
E este amor não resistiu.
Seria muito triste relatar como acabou esta história de amor. Acabou como muitas outras. Quem já se apaixonou perdidamente e perdeu esse amor sabe bem do que falo. E como dói.
João, perante aquela angústia e dor procurou uma dor maior, um sabor mais amargo para se esquecer do passado. È certo que é um erro mas quem já não chorou, quem já não se fechou na sua concha com medo de mais sofrer? João encontrou um sabor mais amargo no bagaço. E o bagaço amargou-lhe a vida. Deixara a escola e começara a trabalhar numa loja qualquer. Tal como quando andava de mota a altas velocidades, queria chegar mais longe, voar, ser livre. Não queria estar preso a nada, nem ao emprego, nem a escritório, nem a horários, a nada. Esta bola de neve levou-o ao sub-mundo, ao mundo obscuro do crime. Especializou-se em cofres. Até tirou um curso de Informática e outro de Electrónica para deslindar os códigos. E era o maior! Todos lhe tinham respeito. O João era o Sr. João Mãozinhas, mestre das jovens gerações e figura de renome, nas vielas escuras de Lisboa. Vivia confortavelmente, rodeado de luxos e de mulheres. Amor não, é muito caro, no submundo da vida lisboeta!
Porque esta história se finde é necessário esclarecer qual a razão de tal pequeno-almoço. Anos atrás, João procurava fugir à Polícia após de um golpe mal sucedido. A bófia apareceu na hora errada, no local errado. João correu o mais que pôde e não pôde pela rua abaixo, até ao cruzamento. Para sua sorte estava um automóvel parado nos sinais. Sem pensar duas vezes, entrou no carro e apontando uma arma ordenou: "Arranca já!". Só momentos mais tarde, viu quem ia a seu lado. Era nada mais nada menos do que seu grande amor - Mila. A Polícia continuava a persegui-los a alta velocidade. Durante a perseguição, que durou meia hora, conseguiram compreender que desde que se separaram tinham sido infelizes devido a um maldito pormenor, que os fez brigarem. Maldito pormenor. A polícia começou a disparar.
-Mila, é melhor parares. Eu rendo-me.
-Não. Podemos escapar. Eu conheço bem a estrada. Vamos fugir daqui, desta vida...
Enquanto falava com um sorriso nos lábios e os olhos brilhantes, Mila desenhava mil e um destinos. Enquanto sorria uma bala assassina atravessou-lhe o vidro traseiro. O carro bateu num muro.
-Mila não morras! Agora não! Não fugas de mim! Mila - chorava baixinho.
-João, nunca me esqueci de ti. Por favor - sussurrou - não te esqueças de mim. Aproveita da vida todos os segundos. Os grandes momentos são feitos de pormenores - a sua voz começava a fugir.
-Mila, fica comigo - João não sabia o que fazer.
-Adeus João. Foge, foge - Foram as suas últimas palavras, fugindo à vida, à noite e à chuva que começava a cair.
Agora se compreende a razão pela qual esse homem tinha tanto cuidado ao tomar o pequeno-almoço, lembrança de tempos felizes com um travo forte à realidade dura e cruel da vida.
O que é senão a vida senão uma sequência de pormenores?

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